domingo, 22 de fevereiro de 2009

A dolorosa radicalização husserliana

Sob a denominação de epoché, os céticos gregos recomendaram a "suspensão do juízo" como forma de se chegar a um ser imperturbável. Tal atitude consiste no incessante questionamento da veracidade de tudo o que nos circunda e tem como conseqüência a inexistência de uma sentença inviolável. Segundo Pirro, duvidar do caráter bom ou mau das coisas levaria o homem a um elevadíssimo grau de sabedoria, uma vez que novas premissas surgiriam para refutar a idéia inicial. O ser imperturbável originar-se-ia da consciência de relatividade das verdades externas ao ser e da conseguinte segurança acerca do próprio ego.

Durante séculos, porém, a epoché esteve ausente do cotidiano filosófico, em virtude do dogmatismo medieval. Foi Descartes que, no século XVII, adaptou a dúvida a seu método, adotando uma postura semelhante à dos céticos gregos. O ego cogito foi preconizado pelo famigerado método cartesiano, que lhe rendeu o título de “fundador da filosofia moderna”, e tornar-se-ia objeto de estudo de um filósofo do século XX: Edmund Husserl.

O ego cogito, na concepção cartesiana, faz parte do homem que está em estado de epoché, o qual, diferentemente dos comparsas de Pirro, não visa mais a torna-se um ser imperturbável, mas apenas a adquirir o conhecimento de uma verdade aceitável e adequada a seus valores. Não obstante a disparidade de fins, o ego permanece inquestionável em ambas as concepções.

Essa “dogmatização do ego” foi considerada contraditória por Husserl. Se a formação do homem imperturbável não é mais o fim, por que não duvidar do ego? Não seria a autocrítica a melhor forma de se chegar a uma verdade absoluta? Submeter o próprio ser a uma metralhadora de interrogações, questionar as próprias intenções, relativizar a si próprio: eis que surge o ego transcendental!

O ponto de cladogênese entre a epoché cartesiana e a epoché fenomenológica foi, portanto, a concepção acerca do ego. O ego transcendental está submetido à epoché e o sujeito cético, fundamentalmente seguro de si mesmo, desaba sob seu autoflagelo. Afinal, duvidar de si mesmo é a forma mais cruel de se torturar. Desses egos antagônicos, surge a necessidade de escolha: verdade sofrida ou imperturbabilidade ilusória? Sobre isso, Nietzsche responde: “A verdadeira questão é: quanta verdade consigo suportar?”